Apocalipse

O texto a seguir é baseado em um dos textos do livro Infância, do escritor Graciliano Ramos.

O gigantesco risco de giz no firmamento foi sendo desenhado na primeira aparição da lua, ainda quando o sol recolhia-se atrás das serras que margeavam o vilarejo. Não era nada mais que um esboço, confundindo-se com as parcas nuvens que desapareciam com o apagar do lampião divino.

Reconheci sua peculiaridade – aquele risco incompleto, indiscreto, esperando as estrelas -quando voltava de meus afazeres para casa a fim de ser banhado e enfiado no conjuntinho com o qual minha mãe dedicava um especial cuidado, na esperança de me apresentar, em sua própria percepção de decência, às parceiras da igreja.

Caminhávamos (minhas irmãs, mãe e eu) ao templo em passos contados, deixando o sereno vencer o calor para que não suássemos, destruindo assim o prodigioso trabalho de minha mãe. Eu olhava para o céu e via sendo desenrolado o fio do cometa que, dois anos antes, tinha sido prenunciado como o fim dos tempos nos folhetos clericais e numa cerimônia parecida com a que iríamos assistir.

Minha mãe, mais preocupada com nossa aparência, perdia a beleza do fim do mundo que era construído nos céus com sublime e atencioso esmero. Na missa, rezamos ao Senhor numa sequência de pedidos, culpas e chagas de imenso pavor, e eu fugia deste medo imaginando como estaria o mundo acabando lá fora. Anjos descendo em carruagens brilhantes seguindo o caminho aberto do desenho divino, pessoas banhadas pela luz morna que escorria desta estrada celeste – um quadro encantador demais para ser apreciado no enfurno de uma igreja cantando lamentações funestas. Mas ainda havia esperança em mim, pois ainda não estava ouvindo as trombetas que anunciavam o apocalipse. Talvez o melhor do espetáculo ficasse à boca da noite.

Quando finalmente saímos, meu coração acelerado, esperando elogios dos serafins pela vestimenta em que eu estava – alegria dada por minha mãe para a ocasião – a paróquia aos poucos foi-se apercebendo do gigantesco sorriso do céu, o cometa que escondia estrelas e anunciava futuros, e todos iam parando em sussurros às escadarias do templo, ora apontando, ora dando gritinhos de glória. Fiquei fascinado por este imenso amor pelo fim, essa fé sem tamanho que receberia o Apocalipse como um novo Natal.

O tempo passava e as coisas não mudavam nos céus. A fé das pessoas arrefeciam assim como as zuadas das conversas, o cansaço das alegrias. Nisso, minha apreensão pelo grande momento também foi murchando. Ao cabo de algumas conversas, o arauto do definitivo ainda estava lá e nossa socialização cumprira seus objetivos. Retornamos para casa normalizando o grande acontecimento da profecia bíblica, seguindo nossa rotina pré-sono como se aquele dia nada tivesse de especial. Eu, criança, lutei o máximo que pude para não ser deixado de fora, pois acreditava que uma surpresa ainda estava guardada. De nada adiantou. As comemorações armagedônicas iam além do horário nobre da TV.

Acordei de manhã afoito, e corri até a janela esperando ver o resultado da passagem do celestes, como aquela criança que brinca com o resto de purpurina ainda não varrida após o carnaval dos adultos – mas nem migalhas para formigas sobraram. As Entidades, além de madrugadoras, eram de uma rigorosa higiene. Assim, a vida seguia como se nada de especial realmente ocorrera.

Bateu-me aquele peso morto no peito. Minha euforia foi a única a realmente encontrar um fim – e dos piores. Foi minha primeira grande frustração. E até vestido para a ocasião eu estava.

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